quinta-feira, junho 23, 2011

A ÚLTIMA UTOPIA BÍBLICA: PISTAS PARA UMA HERMENÊUTICA ESCATOLÓGICA

“É preciso sonhar sempre e recomeçar indefinidamente a mesma projeção para um futuro vislumbrado utopicamente” (José Comblin)

Talvez seja difícil de admitir, mas a Bíblia é essencialmente um livro de utopias. Sei muito bem os riscos que corro, pois o simples fato de dizer que alguma coisa na Bíblia é utopia soa como heresia, apostasia e desvio doutrinário. A dificuldade de admitir isso está no conceito que temos sobre o que seja utopia. Para os cristãos, utopia significa mentira, quimera, algo irrealizável, delírio, fantasia, lugar inexistente, portanto uma falsa promessa.

O Dicionário Houaiss define utopia como: “qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade” Nesse sentido, pergunta-se: existe livro mais utópico que a Bíblia?

Em seu livro "A utopia" Thomas Morus cria um mundo simples e igualitário. Uma criação imaginária de um mundo ideal que descreve realidade não como ela é e sim como deveria ser.

Aprendemos desde cedo a ver a utopia como algo inatingível, distante e irrealizável, ilusão sonho irrealizável. Nada pode ser mais falso do que isso. Na lúcida opinião de Pedrinho Guareschi, a utopia deve ser vista como uma realidade ainda não conquistada, diz ele que é a “Esperança de que aquilo que não é, não existe agora, pode vir a ser, tornando realidade presente aquilo que precisa acontecer”[1]

Outro problema que limita o nosso horizonte hermenêutico é o fato de lermos a literatura bíblica sem considerar o gênero. Dessa forma lemos literatura apocalíptica como se fosse profecia; esperança escatológica como promessa e teologia como se fosse história. Assim, temos dificuldades em entender determinados textos. Embora não seja possível discutir as diferenças existentes, fica evidente que são gêneros distintos.

Que lugar deve ocupar a utopia na pregação da Igreja? Seria ela realmente “um não lugar” ou um “lugar ainda não?” A utopia é a “imaginação criadora”, que visualiza no presente um futuro ainda invisível, porém real, que enxerga a partir do presente, uma realidade possível de ser transformada ou pelo menos melhorada. Nesse sentido, é necessário reacender a imaginação utópica como um meio de transcender às limitações impostas pela dureza do tempo presente, crendo que o utopista é mais que um sonhador, é um visionário e que a utopia é mais que um sonho, é um ideal. Para Pedrinho Guareschi: “A utopia luta pela materialização de um desejo presente. Ela ‘projeta’, isto é, ‘lança adiante de si, as coisas que devem acontecer e poderão acontecer se o homem quiser. A imaginação utópica dá a luz o que já está presente no seio das coisas”[2]

Além disso, a utopia deve ser vista pela sua utilidade. Para que serve uma utopia? Devemos lembrar que o escatologista é antes e acima de tudo um utopista. A mensagem escatológica é eminentemente parenética, se volta para o encorajamento e para o consolo, de forma que o seu elemento basilar não é a certeza de que as coisas serão assim, mas a esperança de uma vitória final. Precisamos olhar para a pregação de Isaias se quisermos entender o sentido e a função da mensagem profética: “Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus” (Isaias 40: 1) Pedro César Kemp Gonçalves assinala que: “A utopia se apresenta como aquilo que nos situa no inexistente, transcendendo ao dado concreto. Ela aplica–se à ausência de alguma coisa. Aparece quando há rejeição da realidade determinista, criando um projeto futuro onde se realizem os seus desejos e aspirações: um futuro que lhe sorria”.[3] O grande problema da pregação cristã é que ela pretende se apoiar na certeza, no absoluto e muitas vezes se torna um canal de frustrações e desesperanças.

Uma olhada ainda que superficial no texto bíblico revela que a utopia ocupa um lugar importante na caminhada de fé, afinal, a fé é possivelmente a maior das utopias que se pode alimentar na experiência cristã. A fé não se caracteriza por ser um lugar aonde se chega e sim por ser um jeito de continuar indo. Como diz Ed René Kivitz: “a fé é aquilo em nós que nos coloca em movimento[4]; em outras palavras: a fé é a única forma de se continuar andando quando o caminho acaba. Nesse sentido, a fé é a mais significativa das utopias, uma vez que só por ela é possível continuar andando em meio ás crises e desesperanças da vida. Segundo Eduardo Galeano, a utopia é isso, serve para eu não deixe de caminhar.

Dessa forma mesmo sem ter a pretensão se ser exaustivo, proponho olharmos para algumas utopias que emergem do texto bíblico. Dentre estas podemos citar:

A UTOPIA DA ETERNA MONARQUIA DAVÍDICA.

Uma das promessas mais contundentes da Bíblia afirma que não faltaria rei sobre o trono de Davi. “Tua casa e teu reino serão firmados para sempre diante de mim” (2 Samuel 7:16) Essa utopia foi confirmada pelo profeta Jeremias; a continuidade da monarquia davídica era uma garantia dada pelo próprio Deus, conforme a expressa a palavra profética: “Pois assim diz o Senhor: Nunca faltará a Davi homem que se assente sobre o trono da casa de Israel” (Jer. 33:17) Essa promessa alimentou os sonhos monárquicos do povo de Israel que vivia a segurança de sempre ter um rei no trono de Davi. O fim da realeza e ainda do povo para o exílio babilônico revelou que tudo aquilo não passava de uma grande utopia, serviu para andar, mas não teve cumprimento. Espiritualizar a mensagem atribuindo a Jesus o cumprimento dessa promessa não atende aos anseios do povo Judeu, que sonhava com uma volta aos tempos áureos de Davi e Salomão.

A UTOPIA DA REUNIFICAÇÃO DO REINO DE ISRAEL

A promessa de que Israel seria reunificado outra vez foi feita pelo profeta Ezequiel. “Farei deles um só povo na terra e será um só rei que os comande a todos. E nunca mais formarão duas nações, nem se dividirão para o futuro em dois reinos” (Ez. 37: 22). Não precisamos fazer muito esforço para saber que essa utopia, apesar de ter consolado e sustentado o povo no exílio, também não se tornou uma realidade, mas serviu para caminhar em meio à crise de desesperança que ameaçava o povo no exílio.

A UTOPIA DO MESSIAS RESTAURADOR.

Em meio à crise que se abate sobre o povo de Israel, com a perda da terra, a destruição do templo, o esfacelamento da realeza, é proclamada a vinda de um descendente de Davi para restaurar o reino a Israel. A escatologia pós exílica preconizava que “o Dia de Iahweh” haveria de vir, e que o reino davídico iria ser de novo restabelecido” [5] Toda a caminhada do povo de Israel foi pautada na certeza de que quando o Messias chegasse, ele “restauraria todas as coisas” Nas palavras dos apóstolos no caminho de Emaús: “nós esperávamos que fosse ele quem havia de remir Israel” (Luc: 24:21) Atos 1.6 registra a pergunta ainda sem resposta: “Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel?”Muito bem, ainda que sejam possíveis reinterpretações capazes de fornecer novos sentidos para as expectativas frustradas, a idéia de um messias restaurador da monarquia em Israel permanece como uma utopia que permeia o imaginário do povo Judeu de forma inconclusa.

A UTOPIA DO NOVO ÊXODO.

A mensagem que emana dos profetas exílicos dá conta de que no retorno para a palestina, Deus faria um novo Êxodo, seria uma volta triunfante; rios brotariam no deserto e jardins no ermo. Tal promessa não se realizou; a volta para a terra foi marcada por crises, conflitos internos e trabalho duro para restaurar os muros e as portas da cidade. Como salienta Alfred Lapple: “Outrora, a travessia das tribos israelitas pelo deserto estivera aureolada de maravilhas. E o caminho de retorno do exílio foi vazio de prodígios. Não houve o triunfo sonhado nem a recepção festiva na pátria, como se esperava. A terra estava devastada, as cidades destruídas” [6] E mais ainda, que “O sonho de um novo reino davídico constituía uma utopia, que politicamente não era mais realizável”.[7] Louis Monloubou assinala que “Ezequiel, e, mais tarde, o Segundo Isaias (...) proclamaram oráculos que davam a esperança de uma restauração maravilhosa. Ora, a realidade do retorno foi muito inferior às predições. Não teria sido esta utopia não realizada do profetismo do fim do exílio um novo motivo de desencanto?”[8] Basta olhar os relatos dos que voltaram do exílio para ver que o novo êxodo foi uma utopia.

A UTOPIA DO PARAISO TERRESTRE.

O profeta Isaias no capitulo 65 afirma que Deus faria um paraíso na terra, no qual as pessoas não experimentariam o sofrimento “nunca mais se ouvirá nela choro nem voz de clamor” (v.19). Nela não há mortalidade infantil, já que “Não haverá nela criança que viva poucos dias” (v.20). Nele as pessoas morrem, mas gozam da longevidade; “aquele que morrer com cem anos será tido por jovem” (v.2). Lá haveria pecado, pois “o pecador que não conseguir alcançar cem anos será considerado amaldiçoado” (v.20). Nesse lugar o lobo e o cordeiro vivem em paz: “O lobo e o cordeiro se apascentarão juntos, e o leão comerá palha como o boi” (v. 25) e a serpente agora se alimenta de pó. E não adianta dizer que esse texto tem a ver com a Nova Jerusalém descrita em apocalipse 21, pois naquela, segundo a narrativa do apocalipticista: “não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor” (v.4) e nela não entrará pecadores. Para Jacir de Freitas Faria “o livro do Apocalipse faz uma grande inclusão, isto é, repete as páginas iniciais da Bíblia sobre o Paraíso Terrestre ao apresentar a utopia da Jerusalém Celeste”[9]. A esperança de um paraíso na terra sem as contradições descritas em Isaias está presente de forma indelével no inconsciente coletivo da raça humana, mas sejamos realistas: é uma lida e admirável utopia.

A UTOPIA DA PARUSIA IMINENTE.

“Pois o filho do homem virá na glória de seu Pai, com os anjos, e então recompensará a cada um segundo suas obras. Em verdade vos digo, alguns dos que aqui estão não provarão a morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino” (Mateus 16:27-28). Mateus 24 fala dos sinais da volta de Jesus; o versículo 30 é enfático: “Então aparecerá no céu o sinal do filho do homem, e todos os povos da terra se lamentarão e verão o filho do homem, vindo nas nuvens do céu, com poder e grande glória”, e depois reforçando o que fora dita em Mateus 16: 28, conclui: “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam” (Mat. 24:34) A Igreja primitiva viveu a certeza de uma volta imediata de Jesus, e não se pode negar que havia base para tal espera. A volta não se deu no tempo esperado, as profecias foram revistas, mas a Igreja não deixou de caminhar.

A UTOPIA DO RETORNO INCERTO:

Depois da expectativa frustrada do retorno iminente de Cristo, a esperança foi revista e para um retorno num tempo incerto; sabe-se que Ele virá, mas não se sabe quando. O próprio texto bíblico fornece pistas conflitantes acerca do assunto. Depois de descrever os eventos que antecedem à volta de Jesus, afirma que apenas o Pai sabe o dia e a hora. Dessa forma, todas as gerações, desde o primeiro século até a presente data, viveram e morreram na certeza de que Cristo voltaria em seu tempo. Os sinais da volta de Cristo se repetem e se renovam em cada geração. Como não vivemos a geração anterior, acreditamos que tudo é inusitado e revelador. Nesse sentido, a volta corpórea de Jesus pode ser considerada como a última utopia bíblica, pois aponta para um “não lugar” para o qual se caminha. Não podemos afirmar que Jesus não virá; isso seria transformar a utopia em distopia.[10] Mas uma coisa é certa: a esperança da volta de Jesus é a mais bela e significativa de todas as utopias, e por ela vamos continuar a caminhada.

FONTES:

Läpple, Alfred. Bíblia Interpretação Atualizada e Catequese, Vol. 2. O Antigo testamento, São Paulo, Paulinas, 1978.

Monloubou, Louis. Os profetas do Antigo Testamento. Cadernos Bíblicos. São Paulo, Paulinas, 1986.

Faria, Jacir de Freitas. Juízes: utopia ou invenção de uma sociedade igualitária?

Guareschi, Pedrinho. Sociologia Crítica: Alternativas de Mudança. 20ª Ed. Porto Alegre, Mundo Jovem, 1989.

Gonçalves, Pedro César Kemp . Reflexões sobre a religião como utopia e esperança. São Paulo, Paulinas, 1985

Kivitz, Ed René. Outra Espiritualidade, São Paulo, Mundo Cristão, 2006

[1] Guareschi, Pedrinho. Sociologia Crítica: Alternativas de Mudança. Mundo Jovem, 1989, p. 121

[2] Ídem, p. 121

[3] Pedro César Kemp Gonçalves. Reflexões sobre a religião como utopia e esperança. p. 39

[4] Kivitz, Ed René. Outra Espiritualidade, São Paulo, Mundo Cristão, p. 186

[5] Lapple, Alfred, Bíblia Interpretação Atualizada e Catequese, Vol. 2. O Antigo testamento. São Paulo, Paulinas 1979, p. 161

[6] Lapple, Alfred. Op. Cit. p. 162

[7] Idem, p. 163

[8] Monloubou, Louis. Os Profetas do Antigo Testamento. Paulinas, 1986, p. 72

[9] Jacir de Freitas Faria. Juízes: utopia ou invenção de uma sociedade igualitária? Disponível em :http://www.bibliaeapocrifos.com.br/conteudo.asp?p=p000140

[10] Usada inicialmente por John Stuart Mill, a palavra “Distopia” é formada do prefixo grego (δυσ) "dis" traduzida por "estranho", "anormal", ou "mau" e (τόπος) "topos" lugar. Distopia, portanto, seria um "lugar mau" ou um “mau lugar”

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