“Religião é casca de cigarra vazia no tronco da árvore e sentimento religioso é a cigarra em movimento” (Rubem Alves)
Em “Imagine... Que Não Há Religiões” texto que escrevi recentemente, teci algumas considerações acerca de possíveis diferenças entre religião e espiritualidade e a partir dele travei um rápido diálogo com Paulo Nascimento, que, na minha opinião nos ajuda a aparar algumas arestas e ampliar o horizonte a ser pensado. Assim, decidi alinhar algumas idéias nesse texto, visando aperfeiçoar alguns conceitos ventilados no texto. Para identificar as falas, usaremos as inicias PN para Paulo Nascimento e NA para Neilton Azevedo
PN - Um mundo sem religiões seria mesmo tão melhor assim que um mundo com religiões?
NA- Ha uma teoria muito difundida por Dermeval Saviani[1] (que você bem conhece) chamada de "Teoria da Curvatura da Vara" que serve bem para o assunto em comento. Como disse no texto, "não sei se um mundo sem religiões seria melhor" ou pior, jamais tivemos a possibilidade de viver essa experiência. Mesmo os países onde ele não é tão presente de forma institucionalizada, convivem com uma religiosidade de bastidor.
PN- Em que medida a divisão entre religiosidade e espiritualidade se sustenta? Quem tem tamanha moral para estabelecer os parâmetros para tal dicotomia? Dizer-se "espiritual" e tipificar o outro como "religioso" não seria uma forma de estabelecer relações de poder? Não seria repetir a mesma arrogância com que a religião tipifica entre puros e impuros? Em que medida essa dicotomia não passa de uma réplica cinzenta da neo-ortodoxia de Barth? Tillich dizia que é impossível falar de Deus em outros termos que não fossem míticos e religiosos. Procede?
NA- Penso que o sustentáculo para manter uma divisão entre espiritualidade e religiosidade padece dos mesmos vícios que qualquer outra cisão de conceitos. Toda vez que nos propomos a fazer distinção entre elementos tão próximos estamos pisando em terreno minado e podemos cometer equívocos. Não sei também se alguém possui moral para garantir os parâmetros dessa dicotomia, mas quem possui para definir qualquer outra? No entanto, acredito que se ela não é um fato inconteste, pelo menos é uma realidade possível. Concordo plenamente que alguém se arvorar a se auto-intitular como “espiritual” e taxar o outro como “religioso”, é fazer um julgamento igual ou pior ainda que aquele que se afirma como “santo” e rotula o outro como “pecador” ou ainda; alguém se definir como “salvo” e classificar o outro como “perdido”; Estaríamos diante de uma reprodução sociológica das mesmas relações de poder e dominação que negamos.
Por outro lado, não vejo dificuldade para distinguir religião de espiritualidade (pelo menos na forma como vejo) Como diz Durkheim: religião tem a ver com sistemas e a sua manifestação é sempre coletiva, enquanto que espiritualidade tem caráter mais pessoal e interior. Essa idéia pode até ser mesmo uma "réplica cinzenta" ou até mais desbotada ainda de conceitos barthianos, mas o inverso também pode ser verdade; a crítica ao conceito pode ser também uma fotografia 3X4 de conceitos tillichianos o que em um caso ou noutro não diminui a sua importância. Mas não há o que fazer o mundo é conceitual e como diria Wittgeinstein, a linguagem cria a realidade, ou seja, nossa forma de ver e entender o mundo passa pela nossa verbalização.
Considerando que toda linguagem sobre Deus é analógica, ou seja, não diz respeito ao sujeito em si, uma vez que ele foge a qualquer possibilidade conceitual, a única forma de falar Dele passa pelo mito e se fundamenta no discurso religioso. No entanto, a espiritualidade não tem por corolário o falar sobre Deus, sobre anjos demônios ou sobre pecado, esse discurso é imprescindível à religião, mas não à espiritualidade, uma vez que esta não depende da elaboração de doutrinas.
PN - Confesso realmente que entre as perspectivas de Barth e Tillich, estou muito mais identificado com o segundo. Em Barth a religião é a expressão da criatura humana perdida em seus pecados. Em Tillich, ao contrário, a religião é a abertura do ser humano à possibilidade de processos revelatórios. - Eu já cultivei muito essa divisão entre religião e espiritualidade. Hoje eu acho que ela é frágil. Eu entendo que quando se fala em religiosidade, se fala de algo mais próximo das instituições. E quando se fala em espiritualidade, se fala de algo mais desapegado das mesmas. No entanto, se olharmos para o conteúdo disso que estamos chamando de "espiritualidade", veremos inevitavelmente o DNA da religião. A não ser que encaremos "espiritualidade" como sinônimo de "humanismo". Não acho isso coerente. Na espiritualidade, quer se creia em deuses ou não, está presente o elemento da transcendência, do mistério, do sentido último da vida, que ultrapassa o ser humano em sua condição de ser histórico. Sei que há humanismos belíssimos na história, e celebro todos eles. Mas penso que espiritualidade é outra coisa. Muito particularmente, creio ainda que a espiritualidade se caracteriza pela comunhão com Deus. Nós, cristãos, chamamos isso de vida no Espírito. Outras tradições dão outros nomes à mesma experiência.
NA - Como disse no texto, uso a palavra espiritualidade partindo da dimensão do espírito humano dos valores que torna o homem "mais humano" e nesse sentido que também vejo a humanidade/espiritualidade de Jesus. Sei que essa não é a única forma de ver e entender o termo. Espiritualidade é um conceito multívoco e possui seus corolários na religião; da mesma forma que religião/religiosidade pode também ter múltiplas compreensões.
PN- Viver a espiritualidade distante dos ambientes institucionais, como fez Jesus, é o mesmo que descartar a visão religiosa do mundo? Em que medida a espiritualidade de Jesus também dialogava com a visão religiosa do mundo?
NA- Penso que Jesus não teve dificuldade em dialogar com a religião de seu tempo, como também dialogou com a cultura, mas não se deixou dominar por ela, não se tornou um “religioso”, suas ações e seus ensinos eram também não se voltavam para o transcendente, já que “as parábolas são narrativas radicalmente profanas. Não há deuses, nem demônios, nem anjos nem milagres, nem tempo antes do tempo, como nas narrativas da criação, nem mesmo acontecimentos fundadores como na narrativa do êxodo”[2] Além disso, talvez a ferocidade não seja a única face da religião que destoa da realidade, a disposição ao controle da liberdade e a tendência a ver o homem numa visão infantil talvez mereça destaque também.
PN - Freud, Feuerbach e Marx vislumbraram um mundo sem religiões no séc. XIX, em que a harmonia humana vigoraria. Nosso Ocidente secularizado cumpriu tais profecias? Vivemos um mundo de paz e equilíbrio?
NA – Apesar de terem pensado um mundo sem religiões, eles não viveram a experiência de um mundo sem religião. A secularização do mundo apenas transmudou a face da religião, que assumiu novos papéis e novas configurações. Dietrich Bonhoeffer ousou pensar em um “cristianismo não religioso”, o que será que ele tinha em mente, um cristianismo sem espiritualidade? Sem valores? Para ele, “Ser cristão não significa ser religioso de certa maneira, tornar-se alguém (um pecador, um penitente ou um santo) com base em alguma metodologia, mas significa ser pessoa; Cristo não cria em nós um tipo de ser humano, mas o próprio ser humano.” (Resistência e Submissão: 16.7.1945) Não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar que a religião seja a púnica responsável pelas mazelas do mundo, nem mesmo que a paz possa ser conquistada pela supressão de qualquer instituição. Mesmo a utopia de uma sociedade sem a ditadura do capital vislumbrada por Marx sofre da mesma lateralidade, ou seja: apenas a supressão do homem da terra talvez pudesse estabelecer o equilíbrio para uma convivência não harmônica mais sustentável.
PN - Se um mundo com religiões é tão feio assim, que dizer do mundo onde vigoram a ciência e o capital? É mais bonito?
NA – Considero o corte feito aqui, profundamente oportuno. Os avanços da ciência e do capitalismo não redundam em benefício para os mais pobres da sociedade; possivelmente a mesma crítica se faz à face doentia do sistema religioso possa ser aplicada também ao capital e à ciência. Certamente que a religião assim como a ciência e o capital são (ou não) subprodutos da sociedade e reproduzem em suas manifestações todo o individualismo e a violência que impera nas relações sociais.
PN - Num mundo sem religiões, o que fazer quando aparecerem novos Bonhoeffers, Luther Kings, Gandhis, Schweitzers, Doroty Stangs, Madres Terezas, Dom Helders, com seus valores todos calcados em suas religiões? Vamos anatemizá-los? Se a religião é intrinsecamente ruim, que fazer a religião esquisita destes aí? O problema é mesmo da religião em si? Ela seria mesmo intrinsecamente má? Ou o buraco seria um pouco mais embaixo? Pense na ciência. Ela é intrinsecamente boa ou má? Nenhuma das duas. Bom ou mau é o uso que se faz da ciência. Você sabe que Einstein foi às lágrimas quando soube que a técnica de fissura dos átomos, desenvolvida teoricamente por ele, foi mais tarde usada para fabricar a bomba atômica. Culpa de Einstein? Óbvio que não! Da mesma forma a religião. O uso que se faz dela é que é uma desgraça. Por isso, meu mano, minha ênfase tem sido colocada em despertar a potencialidade positiva da religião. Claro que o outro lado desse trabalho é criticar a face destruidora da religião. Mas como ênfase, fico com a dimensão libertadora, fraterna, humana, divina, que há na religião. Resumindo: tenho sempre diante de mim a ambiguidade que envolve o fenômeno religioso, mas optei por enfatizar sua dimensão positiva. Não resta dúvida de que historicamente a religião tem sido vetor de tudo quanto é tipo de desgraça. Mas eu resisto a confiná-la a isso. Inclusive, o tal de Ópio Coisa Nenhuma foi cunhado com isso em mente. Não creio que a religião, enquanto fenômeno social e histórico seja intrinsecamente má. Os nomes que citei, por exemplo, são nomes de pessoas que viveram a vida toda dentro do ambiente das instituições. Pode conferir um por um.
NA - Dizer se as personalidades citadas acima realizaram suas ações movidas por valores espirituais ou religiosos, é algo que não posso precisar aqui, mas desconfio que suas motivações embora emanem de dentro de sistemas religiosos, se aproximam em muito da compreensão que Jesus tinha das relações humanas, de olhar para além das instituições para perceber o indivíduo.
- Estou consciente também, que nada no mundo é em si mesma boa ou má. Já disse isso várias vezes inclusive em minhas loucas aulas de teologia. O pecado não está na coisa e sim na forma como se lida com ela. Orar pode ser uma bênção ou uma maldição, a depender das intenções e motivações (que se veja a parábola do fariseu), comer demais pode ser pecaminoso beber demais, etc. Dessa forma, o mal talvez esteja nos extremos, que tanto pode ser a glutonaria ou o jejum rigoroso. - O texto discute a religião em sua face mais dogmática, fundamentalista, fanática e neurotizante. Na prática o texto visa provocar uma discussão acerca da religião que se tem disseminado, especialmente a vertente do cristianismo. Não tive a pretensão de negar o valor de uma religiosidade sadia e voltada para a prática do bem.
PN - Se os fundamentalismos têm uma face feroz e destruidora da vida, seria assim com todas as religiões? Que dizer daquelas que não exigem militância e nem evocam deuses e demônios? E que dizer das religiões ágrafas, que não exigem adesão nem fazem proselitismo?
NA- Concordo plenamente que ao discutir religião precisamos ter em mente que lidamos com um universo bastante extenso. Mesmo as religiões que comumente poderíamos enquadrar como deletéria apresenta suas exceções; nem todo mundo queimou bruxas, nem todos praticaram a inquisição, nem todo cruzado era cruel, nem todo fundamentalista é odioso, e assim por diante. Da mesma forma, há religiões que vivenciam o pacifismo em suas práticas, que não fazem proselitismo e não condena ninguém ao inferno pelo fato de não seguir seus preceitos.
PN - Se a supressão da religião é condição para um novo mundo, por que os socialismos históricos que empreenderem essa supressão foram sistemas tão tirânicos?
NA – Estou convencido de que a extinção da religião não criaria um paraíso na terra, as mazelas do mundo têm outras fontes iguais ou ainda mais cruéis que a religião. Os socialismos históricos reproduziram em seus sistemas com roupagem diferente, os mesmos dogmas e doutrinas que fizeram da religião instrumento de opressão e dominação. Ou seja, os socialismos foram religiões seculares, com seus deuses templos e cultos.
PN - Nos países "desenvolvidos", onde a religião decresce a cada dia, as taxas de homicídio estão lá em baixo. Mas por que as taxas de suicídio são as mais elevadas do mundo? Por que será?
NA - Quanto às taxas de suicídio ser alta em países onde a religião decresce, não é possível estabelecer aqui sem maiores elementos, que relação existe ou deixa de existir com a ausência da religião, existem diversas variantes que precisariam ser consideradas para que se pudesse considerar se existe ou não influencia da redução da influência da religião na vida das pessoas que praticam suicídio nesses países.
[1] Saviani se apropria da “Teoria da Curvatura da Vara” de Lênin e aplica ao processo de tentativa de ajustes da educação da seguinte forma: “quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e se você quiser endireitá-la, não basta colocá-la na posição correta. É preciso curvá-la para o lado oposto” Saviani, Dermeval. Escola e democracia. 32. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 1999 p.48-49).
[2] Paul Ricouer. Citado por Paulo Nascimento in: O arraiá da IBP e o Reino de Deus. Disponível em: http://opiocoisanenhuma.blogspot.com/
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