Estamos publicando a segunda parte dos diálogos travados com Paulo Nascimento acerca de religião e espirtualidade.
N.A - Se não é possível fazer distinção entre religião e espiritualidade, como podemos entender as muitas abordagens existentes que discutem os males da religião? Estes mesmos questionamentos servem para a espiritualidade?
P.N - Primeiro, é possível sim fazer essa distinção. Eu havia dito na discussão anterior que acho a distinção frágil, e devedora à maneira como Karl Barth trabalhava com esses conceitos. Foi depois dele que essa distinção virou moda na Teologia. Mas o fato de eu não trabalhar com essa distinção não a invalida. Afinal, se por um lado eu não absolutizo as formas alheias de se pensar nessas questões, muito menos absolutizo a minha própria forma de pensar. Acho que devemos entender qualquer abordagem, a qualquer fenômeno, criticamente. Óbvio que toda análise está condicionada ideológica e aprioristicamente, inclusive a nossa. Não há como fugir disso. E meu apriori, nesse sentido, é que a religião é tão ambígua quanto qualquer produção da cultura humana. Também penso que a relação entre religião e espiritualidade é mais de um continuun que de ruptura. Por isso não gosto desse fosso radical entre uma e outra.
N.A - Rubem Alves fala de “Religião” e “sentimento religioso”, atribuindo aos dois conceitos valores distintos, de forma que religião se aproxima da idéia de institucionalização da fé e sentimento religioso daquilo que normalmente se chama de espiritualidade. Procede?
P.N - A depender de nossos pressupostos, tudo na vida procede! Lembra de Schleirmacher? Ele também falava em um "sentimento de dependência absoluta". Kierkegaard falava do tal "sentimento oceânico". E Tillich falava de "preocupação última". Todos, com diferentes palavras, estão falando da mesma coisa. Mas outra vez, insisto em não querer separar isso do que chamamos de "religião", mesmo em suas formas institucionais. Acho que a questão não está na proximidade ou na forma institucional. Para mim o problema é de outra ordem. É óbvio que a instituição tende a petrificar o carisma, tende a impor relações de poder que acabam domesticando a experiência com o sagrado. Mas eu fico me perguntando se a experiência espiritual (dentro ou fora da instituição) pode ser traduzida em outros símbolos que não sejam religiosos. Fico me perguntando se ela pode ser traduzida numa linguagem que não seja mesmo mítica, simbólica, sagrada, religiosa. Se quisermos usar a palavra "religião" como sinônimo de "instituição religiosa", aí de fato não dá pra dizer que isso é a mesma coisa que "sentimentos religiosos". Mas acho que a palavra "religião" deve ser pensada com um alcance maior que as instituições. Ela antecede às instituições, ela extrapola as instituições, e confundi-las é um erro.
N.A - Se religião e espiritualidade não podem ser pensadas separadamente, podemos dizer então ser religioso é também ser espiritual. Como entender então a proposta de Bonhoeffer de um cristianismo não religioso?
P.N - Não podemos esquecer que esse conceito de Bonhoeffer ficou inacabado, como um esboço apenas. Ele não teve como desenvolver as implicações dessa proposta. Do que ele indicou, me parece que o "cristianismo arreligioso" está mais para uma espécie de humanismo radical que outra coisa. Chega a me lembrar o existencialismo de Sartre, uma vez que Bonhoeffer propõe que toda referência a Deus e às coisas da religião sejam esquecidas. "O homem deve viver sua vida como se Deus não existisse", diz ele. Como alguém já disse, é uma forma de "ateísmo cristão". Tem lógica? Não sei! Precisaríamos aprofundar mais isso. Suspeito que o contexto de completa desilusão com o protestantismo alemão deva ser levado em consideração na análise da produção de sua proposta. Como entendo a espiritualidade em referência ao que a Bíblia chama de vida no Espírito (e outras tradições chamam de outros nomes), não consigo igualar a proposta de Bonhoeffer a uma proposta de espiritualidade, embora ela seja mesmo tentadora.
N.A - Muita gente profundamente religiosa manifesta atitudes contrárias a uma espiritualidade sadia. Essa distinção procede? Como podemos classificar essas duas vertentes da relação com o sagrado?
P.N - As pessoas manifestam comportamentos ambivalentes nos diversos campos da cultura humana. O da religião é só mais um. Conforme a psicanálise freudiana, a ambivalência é nossa condição inescapável, de tal maneira que não há "espiritualidade sadia" que nos livre dela. Agora, a idéia de uma "espiritualidade sadia" não depende de um mundo de coisas? O que é sadio aqui, não é ali, e vice-versa. Então, uma espiritualidade só poderia ser "sadia" dentro dos limites simbólicos de dada cultura onde as noções de "sadio" e "doentio" estão mais ou menos convencionadas. Georges Canguilhem (orientador de Michel Foucault) tem um livro clássico, chamado O normal e o patológico, onde essas coisas são trabalhadas magistralmente. Por que não haveria uma "religiosidade sadia"? Dizer que não, não seria dizer que a religião é intrinsecamente má? Não retornaríamos assim ao início dessa discussão? E uma espiritualidade doentia seria possível? Por que não?
P.N - Vamos pensar um pouco a relação religião e espiritualidade mais a partir de algumas práticas. Nossa tentação é avaliá-la apenas teoricamente. Vamos tentar analisar algumas práticas. Talvez você diga assim: "mas justo as práticas mostram como a religiosidade é nociva, alienante, castradora, preconceituosa, etc". A questão simples é: todas elas? O que me faz resistir à dicotomia radical entre esses dois termos é a prática de algumas pessoas, dentro das instituições religiosas. Francisco de Assis, Albert Schweitzer, Gandhi, Madre Tereza, Martin Luther King, Dom Helder, foram religiosos ou espirituais? Minha resposta é: as duas coisas. Todas essas pessoas foram o que foram dentro de suas instituições. Eles estavam em total descontinuidade com suas instituições? Sim e não. Sim, pois se relacionavam com elas criticamente, nunca absolutizando-as nem transformando-as em um fim em si mesmas. Não, porque toda sua prática estava organicamente ligada às tradições religiosas a que pertenciam. Acho que esses exemplos facilitam compreendermos aquela idéia de continuun entre religião e espiritualidade. Quando se transforma a instituição religiosa em um fim em si mesmo, como muitas pessoas fazem (a maioria líderes), aí o que temos é mais uma forma de idolatria. Mas eu não chamaria isso de religiosidade, mas talvez de institucionalismo religioso.
N.A - Acho que suas ponderações são absolutamente pertinentes e acrescenta tempero ao debate, mas vamos a alguns desdobramentos:
Consideremos que essas pessoas citadas agregaram em suas práticas religião e espiritualidade e poderiamos acrescentar muitas outras pessoas que fizeram e fazem a mesma coisa. No entanto, resisto a idéia de um continuun necessário por perceber que em sua grande maioria se verifica descontinuidade entre as duas coisas, ou seja: acredito que alguém possa ter condutas ou praticas espirituais sem ser religioso, o que abriria a possibilidade de alguem ser religioso sem práticas espirituais, ou ainda de alguém ser mais religioso que espiritual (ênfase na religião) ou mesmo dessa pessoa ser mais espiritual que religioso (ênfase na espiritualidade). Concordo, no entanto que essas coisas não são estanques, elas são subprodutos uma das outras e interagem entre si, de forma que a religiosidade tende a produzir valores espirituais e a espiritualidade conduz a práticas religiosas (não necessariamente mas possivelmente) Por outro lado eu particularmente não ligo religiosidade a institucionalismo mas aos elementos exteriores tais como ritos, simbolos, cultos, doutinas, etc. Indispensaveis à religião mas não ao desenvolvimento da espiritualidade.
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